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Regularização fundiária urbana e sua difusão no meio jurídico

O tema a mim indicado para discorrer neste evento exige que se faça uma introdução sobre a definição de regularização fundiária, sua causa e seus objetivos. Somente após esclarecer cada um desses pontos, ter-se-á condições de identificar como a regularização  fundiária se propaga no meio jurídico, ou melhor, como SEUS EFEITOS se propagam. Dessa forma, o que vem a ser “Regularização Fundiária Urbana”? Fazendo uma primeira interpretação  gramatical, com a ajuda de Aurélio Buarque de Holanda, pode-se definir:
1) Regularização é o ato ou efeito de regularizar, de resolver, de tornar regular, tornar razoável.
2) Fundiária é um adjetivo relativo a terreno, a terra, a agrário.
3) Urbana é um adjetivo relativo ou pertencente à cidade.
Mas, sabe-se que nem sempre a interpretação gramatical é suficiente para resolver a aplicação e a amplitude de um instituto jurídico. Há também a definição legal prevista no artigo 46 da Lei nº 11.977/ 20 0 9: é o conjunto de medidas (etapas) jurídicas(i), urbanísticas(ii), ambientais(iii) e sociais(iv), que visam (objetivos) à regularização de assentamentos irregulares(i) e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir (consequências) o direito social à moradia(i), o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana(ii) e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado(iii).

Percebe-se que o legislador, em sua definição legal, foi muito mais além do que a mera interpretação gramatical. Nesta, limitar-se-ia a regularizar a terra da cidade, ou seja, sua divisão e sua propriedade.

No art. 46 da Lei do “Minha Casa, Minha Vida”, o legislador emitiu um comando normativo:
1º. Pratique as etapas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais;
2º. Alcance seus objetivos: regularize toda a área parcelada e titule as partes ocupadas;
3º. Enfim, produza suas consequências: direito à moradia, função social da propriedade e meio ambiente equilibrado.

Da aplicação desse conceito, compreende-se que regularizar é um tema multidisciplinar, logo, não se restringe ao Registro Imobiliário. A atuação registral é a última fase daquele procedimento. Equivoca-se quem imagina a regularizao fundiária como uma atividade exclusivamente registral ou, exclusivamente, sobre o controle do oficial de Registro de Imóveis.

Os agentes públicos envolvidos no processo de regularização pertencem a vários órgãos distintos, logo, não são hierarquizados; há uma distribuição de competências, e cada um deve se ater à sua parcela de responsabilidade. Ou seja, a qualificação registral se limita às questões registrais; pontos urbanísticos são de competência exclusiva dos municípios, e a questão ambiental se discute entre estados e municípios.

Contudo, na prática, no dia-a-dia, não é isso que se identifica e deve-se aproveitar esse espaço para registrar essa confusão de atividades, que prejudica o desenrolar da regularização fundiária. Há casos em que o Estado está a analisar a questão urbanística do projeto de regularização ou mesmo a qualificação registral; em outros casos, o oficial de Registro de Imóveis qualifica negativamente o título, fundamentado em questões urbanísticas.

Desabafo à parte, focando no objeto principal aqui discutido, percebe-se que a regularização o fundiária só se encerra quando os ocupantes dos lotes regularizados alcançam sua titulação, tornando-se titulares de domínio nos termos da lei civil; logo, dois são os objetivos da regularização fundiária urbana:
1) regularizar (e não apenas registrar) o parcelamento ilegal;
2) titular seus ocupantes.

Vistos o conceito e os objetivos da regularização fundiária urbana e sua característica multifacetária, antes de aprofundar seus reflexos e sua difusão no meio jurídico, é preciso retroagir à sua causa: os assentamentos ilegais.

Só haverá regularização se existir assentamento implantado e consolidado de forma ilegal.

Daniela Rosário Rodrigues, registradora de Monte Mor/ SP, define ‘assentamento’ como a “área de terra em que se instalou um grupo de pessoas, com a finalidade de constituir habitação ou a exploração da terra. São áreas legalmente irregulares, mas com a efetiva ocupação”.

A Lei nº 11.977/ 20 0 9 define assentamentos como “ocupações inseridas em parcelamentos informais ou irregulares, localizadas em áreas urbanas públicas ou privadas, utilizadas predominantemente para fins de moradias”. Essas ocupações podem se realizar de diversas formas:
– invasão precária e desordenada (favelas);
– loteamento (abertos ou fechados);
– desmembramento (abertos ou fechados);
– condomínio edilício (abertos ou fechados);
– condomínio de lotes (abertos ou fechados).

Equivoca-se a doutrina que limita a aplicao da Lei nº 11.977/ 20 0 9 às ocupações informais, precárias, às favelas. A citada lei, ao definir “assentamentos”, é clara em permitir a regularização de parcelamentos “irregulares”. Assim, qualquer que seja a forma do assentamento, em regra, é passível de regularização, desde que comprovada sua consolidao nos termos da legislao vigente e das normas da Corregedoria-Geral da Justiça dos estados.

Outra ressalva importante a ser feita é com relação à possibilidade se de implementar ou regularizar loteamentos ou condomínio na modalidade “fechado”.

Conforme se discorrerá abaixo, a ordenação urbanística é assunto de competência municipal, logo, compete EXCLUSIVAMENTE ao município aceitar ou não o fechamento de um condomínio ou loteamento. As normas de serviço editadas pelas Corregedorias-Gerais das Justiças estaduais, s.m.j., não podem obstaculizar a utilização dessas espécies de parcelamento do solo, sob pena de enveredarem na competência de ente federativo alheio.
Insta ressaltar  que, além da consolidação, devem – se atentar às limitações  previstas no parágrafo único do art . 3º da Lei nº 6.766/ 1979, em face do risco à população e também às limitações ambientais, previstas nos artigos 64 e 65 do novo Código Florestal.
Com relação a essas limitações, deve-se ressaltar que o legislador pátrio flexibilizou ao máximo a defesa do meio ambiente em prol do direito à moradia, aplicando o que a doutrina jurídica chama de “princípio da cedência recíproca”.
Certo ou errado, justo ou injusto, as Leis nº 11.977/ 20 0 9 e nº 12.651/ 20 12 estão vigendo, logo, devem ser aplicadas! Não se pode ‘ser mais realista do que o rei’. Nenhum dos agentes públicos envolvidos na regularização – municípios, estados, registradores, promotores de justiça e juízes corregedores – detêm competência legal para afastar a aplicação da lei; apenas o juiz de Direito, no exercício do poder jurisdicional, poderá afastar a aplicação de uma lei em face de sua inconstitucionalidade e, enquanto assim não decidido, todos devem acatá-la e cumpri-la.

Esses assentamentos implantados ilegalmente, ao desrespeitarem toda a legislação urbanística e ambiental, geraram e ainda geram diversos problemas. A seguir, rol exemplificativo:
– O crescimento desordenado da cidade;
– A falta de sistema viário oficial apto ao transporte seguro até o assentamento (ruas de terra, estreitas, vicinais etc.);
– A falta da rede pública de ensino para atender as crianças residentes no assentamento; A falta da rede de saúde pública condizente com aquela realidade;
– A falta de linhas de transporte urbano;
– A falta de rede coletora de esgoto;
– A falta de rede oficial de abastecimento de água tratada;
– A falta de coleta de resíduos sólidos;
– A contaminação do lençol freático;
– O surgimento de erosões;
– A impermeabilização desordenada do solo;
– A ausência de drenagem pluvial;
– O aumento das doenças e epidemias em razão do contato daquela população com o esgoto não tratado;
– O consumo de água contaminada;
– A omissão do Poder Público com aquelas pessoas, em regra, tratadas como “invisíveis” perante os cadastros e servios municipais;
– A falta de titularidade dominial aos ocupantes dos assentamentos ilegais;
– A insegurança jurídica: quem não tem o imóvel no nome não será chamado a um eventual processo judicial para defender sua posse, logo, poderá perdê-lo sem possibilidade de defesa;
– A desvalorização imobiliária;
– A sonegação fiscal: diversos tributos não são arrecadados (IPTU, ITBI, ISS, ITCMD, IR);
– O não recolhimento das taxas devidas ao Estado pela lavratura de escrituras públicas e respectivos registros.
Todavia, para descobrir quais são os efeitos negativos de um assentamento ilegal e transformá-lo, regularizando-o, é essencial a instauração de um procedimento administrativo no âmbito do município, o único legitimado a licenciar uma regularização fundiária urbana e, até mesmo, aprovar um loteamento novo.
A premissa acima se pauta na legislação pátria, a começar pela Constituição da República:
Art. 30. Compete aos Municípios:
[ …]
VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

CAPÍTULO II DA POLÍTICA URBANA
Desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
[ …]
§ 4º – É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I – parcelamento ou edificação compulsórios;

A Lei Nacional do Parcelamento do Solo, em seu artigo 12, regra:

CAPÍTULO V

Da Aprovação do Projeto de Loteamento e Desmembramento

Art . 12. O projeto de loteamento e desmembramento deverá ser aprovado pela Prefeitura Municipal, ou pelo Distrito Federal, quando for o caso, a quem compete também a fixação das diretrizes a que aludem os artigos 6º e 7º desta Lei, salvo a exceção prevista no artigo seguinte.

[ …]

Art. 13. Aos Estados caberá disciplinar a aprovação pelos Municípios de loteamentos e desmembramentos, nas seguintes condições – (Redação dada pela Lei nº 9.785, de 1.999):
I – quando localizados em áreas de interesse especial, tais como as de proteção aos mananciais ou ao patrimônio cultural, histórico, paisagístico e arqueológico, assim definidas por legislação estadual ou federal;
Il – quando o loteamento ou desmembramento localizar-se em área limítrofe do município, ou que pertença a mais de um município, nas regiões metropolitanas ou em aglomerações urbanas, definidas em lei estadual ou federal;
III – quando o loteamento abranger área superior a 1.0 0 0.0 0 0 m2 . Parágrafo único – No caso de loteamento ou desmembramento localizado em área de município integrante de região metropolitana, o exame e a anuência prévia à aprovação do projeto caberão à autoridade metropolitana.
Ainda, a Lei do ‘Minha Casa, Minha Vida’ (Lei nº 11.977/ 20 0 9) afirma:
Art. 51. O projeto de regularização fundiária deverá definir, no mínimo, os seguintes elementos:

[ …]
2 o. O Município definirá os requisitos para elaboração do projeto de que trata o caput, no que se refere aos desenhos, ao memorial descritivo e ao cronograma físico de obras e serviços a serem realizados.
Art. 52. Na regularização fundiária de assentamentos consolidados anteriormente à publicação desta Lei, o Município poderá autorizar a redução do percentual de áreas destinadas ao uso público e da área mínima dos lotes definidos na legislação de parcelamento do solo urbano.

Art. 53. A regularização fundiária de interesse social depende da análise e da aprovação pelo Município do projeto de que trata o art. 51.
§ 1º. A aprovação municipal prevista no caput corresponde ao licenciamento urbanístico do projeto de regularização fundiária de interesse social, bem como ao licenciamento ambiental, se o Município tiver conselho de meio ambiente e órgão ambiental capacitado.
Art. 54.

[ …]

  • 1o. O Município poderá, por decisão motivada, admitir a regularização fundiária de interesse social em Áreas de Preservação Permanente, ocupadas até 31 de dezembro de 20 07 e inseridas em área urbana consolidada, desde que estudo técnico comprove que esta intervenção implica a melhoria das condições ambientais em relação à situação de ocupação irregular anterior.

[ …]

  • 3º. A regularização fundiária de interesse social em áreas de preservação permanente poderá ser admitida pelos Estados, na forma estabelecida nos §§ 1º e 2º deste artigo, na hipótese de o Município não ser competente para o licenciamento ambiental correspondente, mantida a exigência de licenciamento urbanístico pelo Município.

Conforme se depreende dos textos legais acima transcritos, reitera-se que a competência de emitir licença e, consequentemente, de coordenar a regularização fundiária urbana é dos municípios.

O estado detém um a função auxiliar, subsidiária. Equivocam -se os estados que criam órgãos estruturados para licenciar regularizações fundiárias ou novos parcelamentos do solo. Os órgãos estaduais, repita-se, têm o condão de, apenas, AUXILIAR os municípios, sugerir, indicar e não decidir. Sempre competirá aos municípios a decisão sobre qual caminho tomar. Então, o município, em seu procedimento administrativo, deve identificar todos os “problemas” que necessitam ser resolvidos. Neste ponto, deve-se alertar que jamais a solução será única; cada assentamento ilegal tem uma história, um problema e um a solução. Somente, repita-se, um estudo multidisciplinar, coordenado pelo município, chegará a um a conclusão séria e completa. E com a aplicação dessa conclusão, poder-se-á chegar aos seguintes reflexos positivos da regularização fundiária e analisar, então, a amplitude de sua difusão no meio jurídico. Assim, regularizado um assentamento, nos termos da Lei nº 11.977/ 20 0 9, podem-se relacionar os seguintes reflexos a difundir no mundo jurídico:  Ao se registrar um projeto de regularização, o município está a reconhecer aquele antigo assentamento ilegal com o um bairro oficial da cidade e, assim, está a assumir a responsabilidade por dotá-lo da infraestrutura  mínima exigida por lei, ainda que venha a tributar seus ocupantes para viabilizá-la. Nesse momento, faz-se observar a sequência das etapas da regularização fundiária, previstas no artigo 4 6 da Lei nº 11.977/ 20 0 9: (1) jurídica; (2) urbanística….. Assim, a infraestrutura, em regra, não virá ao mesmo tempo da regularização jurídica, mas ela deverá ser projetada para que, tão logo viabilizado o orçamento, seja executada;
Instalação de equipamentos públicos básicos para a formação do ser humano (creches, escolas, postos de saúde, curso profissionalizantes);
Propositura de ações e programas preventivos e compensatórios ao meio ambiente;  Reflorestamento de áreas de preservação ambiental degradadas;
Controle de produção de resíduos – tudo que se produz em um assentamento precisa ser controlado, arrecadado e reutilizado;
Responsabilização do loteador faltoso e/ ou do titular imobiliário omisso;
Titulação de seus ocupantes – várias serão as formas de se titular os possuidores, a depender da documentação que eventualmente possuam;
Parcerias com Universidades, Fundações, ONGs, OCIPs, visando à capacitação profissional e intelectual dos moradores do assentamento;
Aumento da arrecadação tributária (IPTU, ITBI, ISS, ITCMD, IR);
Aumento da arrecadação de emolumentos e taxas do Serviço Notarial e Registral;  Valorização Imobiliária;
Aberturas de linhas de crédito para aquisição dos imóveis regularizados, para reforma, construção etc.;
Concessão de crédito público – Os estados e a União possuem programas que subsidiam ou financiam a fundo perdido a implantação de infraestrutura nos assentamentos em fase adiantada de regularização. Enfim, poder-se-ia relacionar dezenas de reflexos positivos.

Contudo, o que se deve frisar é que a difusão jurídica da regularização fundiária urbana é ilimitada. Mas, ela só atingirá grandes proporções se houver união e empenho de todos os agentes públicos e operadores do Direito na busca desses efeitos, cada qual limitando sua atuação às suas competências legais.