Renato Góes e Corregedoria Geral da Justiça debatem Regularização Fundiária
27/08/2013

Regularização Fundiária Urbana – questão intrinsecamente urbanística

Ao participar do XXXIX Encontro Nacional dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, maior evento de âmbito registral realizado no País – a convite do então presidente do IRIB, Francisco Rezende dos Santos, e por indicação do presidente da Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo (Arisp), Flauzilino Araújo dos Santos, dirijo meus agradecimentos a ambos os dirigentes das principais entidades representativas dos oficiais de Registro de Imóveis.

Na condição advogado e palestrante neste Encontro, honra-me compor a mesa de debates sobre “Regularização Fundiária de Interesse Específico” com a palestrante Maria do Carmo de Rezende Campos Couto, vice-presidente do IRIB/SP.

Espero poder contribuir com a experiência jurídica alcançada no empenho pela regularização fundiária urbana em São José do Rio Preto, Estado de São Paulo, onde coordenamos mais de uma centena de procedimentos administrativos visando à regularização fundiária de núcleos habitacionais consolidados de forma clandestina ou irregular, nos quais residem aproximadamente 40.000 habitantes.

No exercício deste mister, buscamos a máxima aplicação da legislação vigente, em especial a Lei no 11.977/2009, com o fim específico de solucionar este problema nacional que afronta a dignidade da pessoa humana.

Já promovemos, junto à Corregedoria-Geral de Justiça de nosso estado, procedimentos administrativos de dúvida, além de consultas, a fim de buscar a interpretação necessária à luz da Constituição da República, visando a auxiliar os municípios paulistas na regularização deste grave problema urbanístico e ambiental que assola nosso País.

Desses procedimentos, surgiram as primeiras decisões administrativas referentes à extensão da aplicação da Lei no 11.977/2009 pelos registradores imobiliários, e, recentemente, a edição do Provimento nº 18/2012, ato normativo que teve o condão de efetivar de forma ampla e ousada a regularização fundiária no Estado de São Paulo.

Com essa experiência, destaque-se um equívoco do legislador autor da citada Lei, que, no afã de buscar o melhor para a população, misturou temas distintos em um mesmo texto legislativo: (a) programa habitacional com (b) regularização fundiária.

Com efeito, houve um equívoco por parte do legislador, visto que o tema aqui debatido é objeto do direito urbanístico e ambiental e nada, absolutamente nada, tem a ver com a condição social das pessoas residentes em parcelamentos ilegais do solo.

Gerados por ricos ou por pobres, os problemas urbanísticos necessitam ser sanados. Em ambos os casos, deve prevalecer o interesse público do município em ordenar urbanisticamente seu território, não podendo fazer distinção entre interesse social ou específico, quando se trata de regularização, sob pena de ferir o princípio da isonomia consagrado constitucionalmente.

Para perceber esse equívoco legislativo, basta questionar se os “dejetos” dos pobres são menos poluentes que os dos ricos; e, não o sendo, portanto, por que razão permitir que construções permaneçam em área de preservação permanente quando classificamos a regularização fundiária como social e não facultar o mesmo benefício para os mais abastados nos casos de regularização fundiária classificada como de interesse específico?

Ora, a única diferenciação que pode existir entre ricos e pobres se dá em obediência ao princípio da capacidade contributiva: pague-se mais quem tem mais e, consequentemente, pague-se menos quem tem menos. De resto, todos são iguais perante a lei.

De forma que, na minha humilde opinião, a Lei no 11.977/2009 regulamentou o assunto de maneira não isonômica, conforme explanamos a seguir.

Na regularização fundiária de interesse social, poderá o ente político antecipar a infraestrutura e, na de interesse específico, não! Mas se a instalação de infraestrutura tem por objetivo obstar os danos ambientais gerados pelo parcelamento ilegal, por que antecipá-las para os mais pobres e permitir que os mais ricos continuem poluindo?

Na regularização fundiária de interesse social, o Município pode agir de ofício, o que não ocorre com a de interesse específico. Então, indaga-se: se o loteamento é ilegal e causa danos, por que o município pode agir imediatamente para sanar os problemas urbanísticos e ambientais causados pelos mais pobres e tem de esperar ou compelir os mais ricos a fazê-lo?

Na regularização fundiária de interesse social, poderá o municí- pio licenciar urbanística e ambientalmente, enquanto na de interesse específico isso não é possível. Ora, se o município tem capacidade e corpo técnico para licenciar regularização fundiária dos mais pobres, por que não o teria para os mais ricos?

E, ainda, na regularização fundiária de interesse social, poderá o ente municipal legitimar a posse visando à titulação de seu ocupante, sendo que na de interesse específico não pode. Contudo, se toda regularização busca a titulação, nos termos do art. 46 da Lei no 11.977/2009, por que concedê-la aos mais pobres e deixar os menos pobres sem título algum, perpetuando a ilegalidade?

Percebam a flagrante falta de isonomia: como pôde o legislador pátrio diferenciar pessoas que vivem na mesma “realidade fática” de ilegalidade urbanística, ambiental e registral?

De sorte que, penso que a Lei no 11.977/2009 deve ser interpretada conforme a Constituição: isonomicamente.

Com relação à área específica dos Registros Públicos, também não vislumbro fundamento legal algum para fazer distinção registral entre a regularização fundiária de interesse social e específico. Para mim, esta unicidade do procedimento registral encontra transparência nas leis vigentes. Vejamos:

Reza o art. 64 da Lei no 11.977/2009: “O registro do parcelamento resultante do projeto de regularização fundiária de interesse específico deverá ser requerido ao registro de imóveis, nos termos da legislação em vigor e observadas as disposições previstas neste capítulo”.

Duas são as expressões que chamam a atenção:

1ª “Nos termos da legislação em vigor”. Pois bem, qual a legislação registral em vigor? A Lei no 6.015/1973. E o que ela estipula? Estipula apenas o capítulo XII sobre o registro da regularização fundiária urbana, sem fazer uma única distinção entre procedimentos registrais diversos para o registro do projeto de regularização em face do interesse – seja social ou específico.

2ª “Observadas as disposições previstas neste capítulo”. A qual capítulo o legislador se refere? Ao capítulo III – também único –, no qual se prevê vários instrumentos que visam a atender aos objetivos voltados para toda e qualquer espécie de regularização – regularização e titulação –, tais como: demarcação urbanística, legitimação de posse etc.

A partir da leitura deste capítulo, percebemos, por exemplo, que auto de demarcação urbanística foi um instrumento criado para sanar uma falha registral: a inexistência ou imprecisão de matrícula. Então, como limitá-lo aos casos de regularização de interesse social? E nos casos de interesse específico: deixaremos de regularizar por não conseguir identificar uma matrícula no fólio real e por que a lei não determinou expressamente o uso do referido instrumento para esses casos?

Qualquer que seja a lei, ela deve ser interpretada conforme a Constituição, portanto, de forma isonômica.

O oficial de Registro de Imóveis não faz distinção quando procede ao registro de uma mansão ou de um casebre, desta feita, por que fazê-la entre um loteamento de rico e o de pobre?

Tal pergunta tem a ver com a principiologia registral: os princí- pios que regem a conduta do registrador não trazem distinção pautada na condição financeira do requerente. A segurança jurídica, a publicidade, a especialidade, a continuidade balizam qualquer espécie de registro ou averbação.

E os argumentos pertinentes ao posicionamento jurídico aqui defendido ficam tanto mais fortes, quando tentamos diferenciar regularização de interesse social da regularização de interesse específico. Vejamos:

Reza a Lei no 11.977/2009 que, dentre outros requisitos, a regularização de interesse social atende à população de baixa renda; e o que seria a definição de baixa renda? Para alguns, renda familiar de até 3 salários-mínimos; para outros, renda familiar de até 5 salários-mínimos. Primeiro problema: como comprovar essa renda em um país onde a informalidade toma conta do mercado? Como acreditar tão somente na informação verbal do ocupante de assentamento ilegal em um país onde a sonegação do imposto de renda domina o mercado? Ora, conhecemos diversos profissionais renomados, detentores de carros de luxo e mansões, que se gabam de serem isentos de declaração de imposto de renda! Neste caso, estariam eles “protegidos” pelos benefícios previstos para a regularização fundiária urbana de interesse social?

A título de exemplo, se identificarmos um ocupante de um loteamento clandestino que, hoje, tem uma renda de 10 salários-mínimos mensais, portanto, extrapolando qualquer limite de pobreza, ele não fará jus aos instrumentos legais da Lei no 11.977/2009. Todavia, se amanhã ele perde o emprego e entra em uma situação de miséria, então, pode ele se beneficiar da regularização fundiária de interesse social, da demarcação urbanística, da legitimação de posse negada ontem? E se, após receber o título de legitimação de posse, ele consegue outro rentável emprego, o município cassará a legitimação outorgada?

Essa situação exemplificativa demonstra o flagrante equívoco legislativo que precisa ser imediatamente sanado por meio de uma interpretação correta e justa da lei, conforme a Constituição.

Dito isso, conclamo os oficiais de Registro de Imóveis a se unirem, por meio de suas associações de classe, em torno da busca pela uniformização dos procedimentos registrais relativos à regularização fundiária urbana com vistas a um procedimento registral único, nos moldes do Provimento nº 18/2012 da Egrégia Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo. Prevendo a aplicação dos instrumentos legais apontados pela Lei no 11.977/2009 para toda e qualquer forma de regularização, deixando a diferença social para ser verificada quando do pagamento da conta da regularização.

Registro, encerrando esta breve explanação, que me encontro à disposição do IRIB para fazer parte desta luta por uma legislação mais justa e efetiva, que resolva definitivamente os problemas dos parcelamentos ilegais do solo.

Finalizo relembrando-os que o Registro de Imóveis deve garantir a segurança jurídica que demanda a propriedade imobiliária, contudo, essa segurança jurídica deve proteger e certificar a realidade, sob pena de a população desacreditar cada vez mais nas funções registrais, por não entender seu primordial papel no Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, suscito as seguintes reflexões: de que vale uma certidão imobiliária expedida com fé pública e segurança jurídica se o seu conteúdo retrata uma inverdade fática? Qual a utilidade e o valor desta certidão que atesta uma situação alterada há décadas? O que o oficial de Registro de Imóveis pode fazer para mudar esta situação?